Ela olhou-se mais uma vez no espelho. Os cabelos negros estavam presos em um coque, com apenas alguns fios soltos na nuca. O vestido azul não tinha mangas e descia até os seus tornozelos. A maquiagem estava quase perfeita e precisava só de um último retoque.
Virou-se para pegar, em cima de sua cama, o estojo de sombras coloridas em meio a uma grande variedade de objetos, desde perfumes até livros. Organização não era mesmo o seu forte.
Em sua velha vitrola, a agulha deslizava sobre um disco de Billie Holiday.
De repente não mais fitava a sua figura no espelho, e um filme começava a desenrolar-se em sua mente.
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- Beatriz, minha filha querida, você sabe por que tem esse nome?
- Não, papai. Não faço ideia.
- Houve um homem brilhante, um italiano que viveu há muito tempo atrás, chamado Dante Alighieri. E ele amava uma mulher, acima de todas as outras coisas e a ela dedicava o que escrevia, assim como muitas vezes escreveu inspirado pelo amor que nutri por ela. Era assim também que eu amava a sua mãe, querida... Você adivinha o nome dessa moça?
- Beatriz!
- Isso mesmo, querida! E por isso vou lhe dar este livro. Chama-se “A Divina Comédia”. Mas só quando você for um pouco mais velha vai poder compreendê-lo. Agora você é apenas uma menina de oito anos... Portanto trouxe este outro também.
- Reinações de Narizinho... É bom?
- Beatriz, isso você é quem vai ter de descobrir.
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- Ei, Bea! Não é hoje que você vai se inscrever pra prestar vestibular?
- Sim, Rob, é hoje sim. Nem chegou a hora da prova ainda e já estou nervosa, pode?
- Mas, o que você vai fazer? Medicina? Direito, quem sabe?
- Rob, não se faça de tonto. Você bem sabe que eu quero fazer Letras desde que comecei o Ensino Médio. Aliás, acho que já nasci com esse pensamento.
- Sim, Bea, eu sei. Mas é que sei lá... Letras? No que você vai trabalhar?
- Olha, posso fazer muitas coisas. Mas o que eu quero mesmo é ser uma boa professora, fazer com que meus alunos amem os livros da maneira que eu amo, que sejam seres pensantes, que não reproduzam a mediocricidade que a mídia promove tanto hoje em dia.
- Ok, ok, Srta. Bea, você me convenceu. Boa sorte.
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- Alô, Rob?
- Quem é que... Bea, é você?
- Sim, sim, sou eu. Desculpa, eu sei que são três horas da manhã, mas acontece que o resultado do vestibular saiu e... eu passei, em primeiro lugar, Rob, sabe o que é isso?
- Minha nossa, Bea, achei que fosse algo ruim e... Ei, você disse o quê? Isso é maravilhoso! Espera que em 10 min, eu chegarei aí!
- Não, Rob, espera, eu só... Ih, desligou.
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- Elizabeth, por favor! Vamos chegar atrasadas pra aula.
- Não seja estraga-prazeres, Bea! Só quero dar uma passadinha no prédio da História, os caras ali são o máximo!
- Beth, hoje tem prova você ficou louca?
- Bea, você me decepciona! Depois que começou a namorar aquele Bob...
- É Rob!
- Que seja! Você se tornou uma chata, não sai mais, não paquera, não curte a vida. Meu Deus, Bea, o livro preferido do cara é Guerra e Paz!
- Eu gosto de Guerra e Paz.
- Eu sou muito mais qualquer coisa que o Balzac tenha escrito.
- Beth, vamos, ok? Hoje tem prova sobre “Os Sertões”...
- “Os Sertões”? Eu li “Grande Sertão Veredas”, será que adianta?
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- “People talking without speaking, people hearing without listening...”
- Ei, senhorita Simon & Garfunkel, está pronta?
- Rob, espera um pouquinho! Eu adoro escovar os cabelos ouvindo “Sound of silence”. Sinto-me tão cinematográfica...
- Você não tem mesmo jeito, não é, querida? Sinto atrapalhar sua tentativa de conquistar o Oscar, mas acontece que a reserva foi feita para as oito e meia.
- Desculpe-me, amor. Acontece que eu passei a tarde digitando preparando os planos de aula da semana... Acabei perdendo o horário. Pronto, viu só? Acabei. Vamos.
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- Júlio César?
- Sim, filha, é meu livro favorito de Shakespeare. Eu destaquei um trecho, veja. Quero que sempre se lembre de mim ao lê-lo. Pense nele como um conselho de pai.
- Obrigada, papai! Eu amo você, muito! Ah, aqui está, vamos ver: “Há uma maré nos casos dos homens...”
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- Ah, Rob! Aqui está o seu livro... “Para viver um grande amor”, não? Vinicius de Moraes, poxa, quem diria! Você lendo poesia...
- Bea, eu quis que você viesse até a biblioteca comigo por quê... Olha, vamos sentar naquela mesa logo ali.
- Certo, então...
- Abre na página 34. Lê a partir da terceira estrofe.
- Vejamos, aqui, página 34, e... Terceira estrofe:
Ah, quem me dera ver-te
Sempre a meu lado
Sem precisar dizer-te
Jamais: cuidado...
Ah, quem me dera ver-te!
Ah, quem me dera ter-te
Como um lugar
Plantado num chão verde
Para eu morar-te
Morar-te até morrer-te...
- Rob, o que...
- Bea, você quer ser a minha Julieta? Quer dizer sem a parte de morrer jovem, e também sem fórmula pra fingir a morte, com o padre e tal. E também sem inimizades de família e também não é Verona...
- Romeu, Romeu, cale a boca! É claro que eu aceito! “Jura-me somente que me amas e não mais serei uma Capuleto.”
- Contenha-se, Julieta, a bibliotecária está olhando para nós, e de cara feia... Chega mais perto de mim... “Chama-me apenas ‘amor’ e serei de novo batizado”...
- Romeu, Romeu, porque sois tão Don Juan?
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- Fernando Pessoa escreveu certa vez:
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado.
- É isso, Robert, quero você, para sempre...
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- ...E fizemos o possível, senhora Beatriz, mas seu pai acabou não resistindo. Sinto muito.
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Rob bateu na porta levemente, dispersando-a de suas lembranças.
- Ei, sonhadora! Vamos?
- Oh, Rob... Eu estava apenas pensando... – largou o estojo de maquiagem na penteadeira- Queria que papai estivesse aqui hoje. Ele teria tanto orgulho de mim...
- Querida, eu acredito que ele está orgulhoso de você. E também acho que ele concordaria comigo que você está realmente linda. Cada dia mais...
- Eu amo você, obrigada – Beatriz beijou-o na bochecha – Rob, antes de irmos, tenho um presente pra você – entregou-lhe um pequeno embrulho – Vamos, abra-o!
- Mas é você quem deveria ser presenteada hoje – protestava, enquanto abria o pacote minúsculo – Bea, eu... – parou quando viu um pequeno par de sapatinhos de lã vermelhos – você quer dizer...
- Sim, Rob, é isso mesmo – disse, sorrindo emocionada – em breve Romeu e Julieta vão ter que aprender a trocar fraldas, fazer mamadeira...
- Bea, eu nem posso acreditar! Hoje é o dia mais feliz da minha vida!
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- Passamos a palavra à oradora da turma de 2011, Beatriz Novaes de Lima.
- Caros colegas, professores e pais... Boa noite a todos. É muito especial para mim estar aqui esta noite. Quero deixar uma palavra a vocês, para que sigam sempre fiéis a sua carreira, sem desistir, sempre lutando para tornar o nosso mundo um lugar mais digno para se viver. Certa vez alguém me deu um livro; como marcador de página havia uma rosa branca. Na página marcada, havia um trecho sublinhado. Ele dizia:
“Há uma maré nos casos dos homens... Cuja, levando à inundação, nos encabeça à fortuna... Mas omitidos, e a viagem das vidas deles está restrita em sombras e misérias... Em um mar tão cheio estamos agora a flutuar... E nós devemos pegar a correnteza quando nos for útil... Ou perder as aventuras antes de nós. Não deixem seu fogo se apagar, faíscas por insubstituíveis faíscas na troca perdida do não exato, do ainda não, do não de jeito nenhum. Não deixe o herói na sua alma se extinguir numa frustração pela vida que você mereceu e nunca pôde alcançá-la. O mundo que você deseja pode ser ganho. Ele existe. É real. É possível. É seu. Não seja ninguém além de você mesmo, em um mundo que está fazendo seu melhor, noite e dia, para te tornar outra pessoa. Esta prestes a lutar a batalha mais difícil que qualquer ser humano pode lutar e nunca deixa de lutar. Quando muitos estão sozinhos, parecendo estar só, é extremamente egoísta ficar só, sozinho”.
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Em casa, Reinações de Narizinho, Guerra e Paz, Júlio César e A Divina Comédia compartilhavam uma única prateleira da estante, a mais alta, separados dos outros. Dentro de um deles havia um bilhete. Nele estava escrito:
O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
(Fernando Pessoa)